... que li durante a
viagem de avião e só tinha pena que não consegui rir a vontade, nem tinha com
quem comentar…
Um Dó Li Tá
Existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé?
Existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé?
Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do
governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que
não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram
casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes
acrescentaram um pin na lapela, porque é giro
- Eh pá embora usar um pin?
que representa a bandeira nacional como podia representar o
Rato Mickey
- Embora pôr o Rato Mickey?
mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os
portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu
- Mete-se antes a bandeira como o Obama
e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as
play-stations virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam,
todos contentes, que engraçado, a mandarem na gente
- Agora mandamos em vocês durante quatro anos, está bem?
depois de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a
sopa toda e estudam um bocadinho em lugar de verem os Simpsons. No meio dos
meninos há um tio idoso, manifestamente diminuído, que as famílias dos meninos
pediram que levassem com eles, a fim de não passar o tempo a maçar as pessoas
nos bancos, de modo que o tio idoso, também de pin
- Ponha que é curtido, tio
para ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de
Angola, que os meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que
mal faz? Isto é tudo a fazer de conta.
Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não
devem ser criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos
exageram, e eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar
Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um
Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho
não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos: Touro Sentado,
Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é americano, pá, e,
sinceramente, tanto álcool no jardim escola preocupa-me. A ASAE devia andar de
olho na venda de espirituosas a menores. Outra coisa que me preocupa é a
ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o significado de
palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a
gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não
têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou
- Não pretendo esconder nem ocultar
apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau
grado compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão
tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura
maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por
inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de
levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar ainda formada, e
entender que mudar constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não
possui, na infância, um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros
em evolução e, com o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos
exigir-lhes que o sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos,
afagá-los, perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha
do garoto que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram
para as Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito
exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a obedecer a uns
senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles para além de
empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego, estrangularem-nos,
desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha, destruírem-nos? São miúdos queridos,
cheios de boa vontade, qual o motivo de os não deixarmos estragar tudo à
martelada? Somos demasiado severos com a infância, enervam-nos os impetuosos
que correm no meio das mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que
incomodam os clientes, a nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há
pessoas crescidas a orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa
daqueles que não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm
sido injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar
argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das mulheres
e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da República que
paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da República, Mário
Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos sobrar algum dinheiro,
carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem uns com os outros acerca da
melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o problema se há tanto sol neste
País, mesmo que não esteja lá muito certo de o não haverem oferecido aos
alemães? E, de pin no casaco que nos fanaram, isto é, de pin cravado na pele
(ao princípio dói um bocadinho, a seguir passa)
encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho, cheio
de ternura, nas testazitas inocentes.
António Lobo Antunes
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