Pensamento positivo, meu amigo,
pensamento positivo
Aos quarenta e cinco anos
quem me dá trabalho? Ninguém, claro. É capaz de haver uns contentores de lixo
com restos de comida, e também se podem comer os filhos, como propunha Swift
para combater a fome na Irlanda. E quando os filhos se acabarem coma-se a si
mesmo. Ossinhos dos dedos chupados um a um.Nunca me foi tão difícil escrever uma crónica: três dias a rasgar papel. Normalmente fico uma hora ou isso, de caneta suspensa, e depois as palavras começam a sair sozinhas. Esta não, e já estou farto de deitar frases para o lixo. Julgo que se deve ao facto de ter demasiadas coisas dentro de mim, de viver uma altura difícil, de me achar melancólico e revoltado. Melancólico com a minha situação, revoltado com a situação do meu país. É raro o dia em que não me pedem
- Não me arranja um emprego?
a mim, que não possuo poder nenhum, e lá fico a ouvir
histórias desesperadas e tristes. Os portugueses estão a sofrer muito, e o
sofrimento dos portugueses é mais importante do que o meu: que direito tenho de
me queixar seja do que for? Quanto a mim não consigo fazer nada, quanto aos
outros a minha importância colectiva é nula. Um amigo médico, por exemplo
- Fale do que se está a passar na Saúde
como se aquilo que eu escrevesse mudasse alguma coisa.
Não muda. Sou apenas um homem que faz livros, preso por um contrato que assinei
sem ler, como de costume, a uma editora que me não agrada. Não tenho grandes
ilusões. Nem pequenas, aliás. A árvore, em frente da minha janela perdeu as
folhas: ramos torcidos, sombras de pássaros nem sonhar. Eu reflectido no vidro,
sentado a esta mesa. Esferográficas, páginas, uma lupa, porque as primeiras
versões são numa letrinha minúscula que, por vezes, me custa ler. Trago uma
espada no peito. Volta e meia torce-se nos pulmões. E lá está a crónica a
resistir. Não quer ser feita, tem a consciência de não valer grande coisa. E,
mesmo que valesse grande coisa, o que valia? Não há imortalidade: há o silêncio
que se vai espessando à volta de um nome, até o nome desaparecer por inteiro.
E, até desaparecer, tanta inveja, tanta mesquinhez, tanta patetice. Para quê? A
nossa existência é um pequeno evento pedestre: quem se rala? Os outros, por
muito que nos queiram, estão de fora. E, depois, partem, construindo-se uma
nova alma. Aqueles de quem gostei tornaram-se ausências que se estreitam.
Continuo a lembrar-me deles: vai doendo menos. Vai doendo menos? Vai doendo
menos. Quem se lembrará de eu pequeno?
- Fale do que se está a passar na Saúde
e qual saúde, Zé? A nossa, a dos outros? Lembro-me que
na primeira urgência interna que fiz no Hospital de Santa Maria, depois do
curso, morreram seis doentes. Um médico, no dia seguinte
- Eh pá você bateu o record
e eu, que era um miúdo, atarantado com a minha proeza.
- Não me arranja um emprego?
porque o subsídio acaba daqui a nada e depois o que
faço eu, diga lá? Aos quarenta e cinco anos quem me dá trabalho? Ninguém,
claro. É capaz de haver uns contentores do lixo com restos de comida, e também
se podem comer os filhos, como propunha Swift para combater a fome na Irlanda.
E quando os filhos se acabarem coma-se a si mesmo. Ossinhos dos dedos chupados
um a um. Nunca me foi tão difícil escrever uma crónica. Olhe, já agora
experimente comê-la embora deva saber mal como rabo de gato e não alimente
nada. Estou a compor isto enjoado de mim, embora tenha batido um record. Seis
pessoas é obra. Aguenta mais um mês, António, e logo sabes. Talvez te comam numa
urgência interna.
- Como se chamava aquele?
- Não me vem agora o nome mas escrevia livros.
- Desses que a gente gosta?
- Não, dos complicados, dos que dão trabalho.
Livros que não falavam, ouviam. Eu prefiro coisas que
distraiam, para maçadas basta a vida. Conselho de um editor
- Publique histórias leves, histórias que distraiam
E tem razão, para maçadas basta a vida, dêem-me
episódios que me divirtam, que chumbada pensar.
- Não me arranja um emprego?
um emprego, um empregozinho, dinheiro para pagar as contas,
seja o que for preferível a esta angústia, tudo é preferível a esta angústia. E
tem razão. Tudo é preferível a esta angústia, tudo é preferível a esta miséria.
- Fale da Saúde
fale da Saúde, da electricidade, dos transportes, da
prestação da casa, da prestação do carro, da prestação da máquina de lavar, dos
preços no supermercado, dos sapatos que o meu marido precisa, da penúria em que
ando. Isto não é uma crónica, é um gemido indistinto, a minha mãe
- Não compraste umas hortaliças, filho?
o carro parado há dois meses que não há para a
gasolina. Já não haverá mais para a gasolina. Talvez para uma garrafinha de
petróleo
(pode ser que exista quem fie)
verter a garrafa em cima de mim e chegar-lhe um
fósforo. Depois uns tempos na enfermaria até as queimaduras do terceiro grau
resolverem o assunto. E não é preciso emprego. Quer dizer, já não é preciso
emprego. Quer dizer, já não é preciso preocuparmo-nos com a saúde. Já não é
preciso comer o filho. Já não é preciso comer nada. Nem acabar esta crónica. Nem
rasgar papel. Nem deitar períodos para o lixo. Nem estar à espera do exame no
mês de abril. Nem ter demasiadas coisas dentro. Nem de não estar satisfeito com
a editora que, essa sim, ficará satisfeita dado que quando um escritor pifa
vende mais e é maçador falar nisto mas vender é importante. A cultura é muito
bonita porém, como deve calcular, como suponho que calcula, como calcula com
certeza, é necessário ganhar a vidinha. Nunca lhe foi tão difícil escrever uma
crónica? Pois olhe, já a terminou, vê, você lamenta-se, lamenta-se, mas acaba
por cumprir o trabalho. Muito gostam os artistas de choramingarem.
António Lobo Antunes
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