Foi neste dia, depois de ouvir o 1º ministro a
dizer que o orçamento é ‘duro’, mas os funcionários públicos e os pensionistas ‘conseguem
aguentar porque este ano não é mais difícil do que ano passado e não vão perder
mais no próximo ano do que em 2013’, que li a carta que transcrevo aqui.
E fiquei mais contente, pelo facto de existirem
pessoas neste país, que sabem o que dizem…
Senhores
Deputados,
Sabemos que, só
a partir de 2003, começaram a ser tomadas medidas no sentido de tornar sustentável
o sistema de aposentações da função pública, numa clara e pública confissão da incompetência
dos sucessivos governos para encarar um problema que já era previsível nos fins
da década de 80 (ver adiante)! Desde 2003, o “ataque” aos aposentados intensificou-se,
nalguns casos com justificações aceitáveis.
Foi assim que a
idade da aposentação e o tempo para a atingir se foi alterando e aumentando, ao
mesmo tempo que as regras de cálculo das pensões eram também alteradas.
Acabou-se, e
bem, com a possibilidade de um aposentado do Estado poder acumular a sua pensão
com qualquer forma de remuneração atribuída por esse mesmo Estado. Chegou-se, porém,
ao exagero de as gratificações, ou senhas de presença, por se ser membro de uma
Comissão qualquer, prevista na lei, não poderem ser recebidas quando se é
pensionista. Há, assim, aposentados a trabalhar em Comissões legalmente
criadas, sem poderem sequer receber senhas de presença, por exemplo.
A
irresponsabilidade dos sucessivos governos acabou por nos levar à situação de dependência
em que nos encontramos, com a obrigação de cumprir um Memorando de Entendimento
que tem trazido a miséria a muitos portugueses. A convergência dos sistemas, público
e privado de pensões, estava entre as medidas previstas no Memorando, não
dando, contudo, indicações específicas sobre o modo de o fazer.
O atual governo
demonstrou, há mais de um ano, em especial através do Primeiro-Ministro, uma
propensão para lançar privados contra públicos e novos contra velhos, manifestando
claramente uma aversão aos aposentados em geral (Contribuição Extraordinária de
Solidariedade) e, de entre estes, aos da função pública. Não admira, portanto,
que tente levar avante a sua ideia de penalizar estes últimos, através de uma
proposta de legislação, aprovada em Setembro de 2013, que lhes retira, de um
dia para o outro, uma parte considerável das suas pensões, sem qualquer preocupação
com uma transição a que o Estado nos tem habituado.
Dir-se-á que,
na situação em que o país se encontra, tal seria inevitável, mais tarde ou mais
cedo. Mas não basta afirmar: é necessário provar.
Sejamos claros.
Não me custa,
absolutamente nada, admitir que, numa situação de emergência, como a atual, o
Estado se veja obrigado a quebrar algumas partes dos seus contratos e não faço
disso um segredo.
Escandaliza-me
muito, porém, que esse mesmo Estado ataque de maneira despudorada os que menos
recebem, os desempregados e os doentes.
Escandaliza-me
que esse Estado determine cortes, recorrendo ao fomento da discórdia entre
gerações e entre diferentes grupos de trabalhadores.
Escandaliza-me
que esse Estado “esqueça” a sua própria responsabilidade na situação criada e
venha, agora, querer dar a entender que são os reformados e os funcionários
públicos a origem de todos os males e os culpados pela situação, como se
tivessem sido eles a elaborar as leis que os conduziram à condição de “privilegiados”.
Escandaliza-me
que um Estado responsável admita, em nome de uma equidade que só ele entende,
tratar os atuais funcionários públicos como uma classe a abater.
Aceito mal que,
numa deriva de “tiro aos reformados”, esse Estado tenha até admitido a existência
de uma “TSU” (aparentemente abandonada, por agora) com um valor não justificado,
porque não sustentado em estudos, e, portanto, arbitrário, criando uma situação
de desconfiança que, para além da injustiça a criar, pode gerar uma grave
convulsão social.
Mas não devem
restar dúvidas de que há desigualdades que importa diminuir ou eliminar, sendo
a fórmula de cálculo das pensões dos atuais aposentados, que entraram para o
Estado antes de 1993, uma das que deve ser discutida e encarada. A correção
pode, ou não, ser a proposta e ser gradual. Tal depende da real situação das
“finanças” da CGA, mas tendo muito em conta os constrangimentos que lhe têm
sido impostos (por exemplo, não recebe subscritores desde 2005, creio eu).
Dito isto, é
claro que considero saudável que essa discussão se faça e que sejam encontradas
soluções que podem passar por um corte imediato ou progressivo, com a correção
da fórmula de cálculo. Mas tal só deve ser feito após se esclarecerem algumas
questões e se desfazerem algumas mentiras:
1. Afirma-se que a
CGA está sem dinheiro para pagar pensões. Tal não é de espantar – o patrão
Estado, só a partir de meados desta década, começou a pagar a sua parte, como fazem
os privados, não podendo, por isso essa verba ter sido capitalizada quando tal
ainda era possível; desde 2005 não há novos funcionários a descontar, pelo que,
aumentando o número de aposentados, o sistema vai mirrando. Será que o governo
será capaz de dizer isso aos contribuintes, isto é, que foi o Estado que criou
esta situação?
2. As regras da
aposentação dos funcionários públicos têm vindo a ser apertadas (e bem) desde
2003, em mudanças sucessivas da lei, aproximando os regimes. Está o governo em condições
de informar quanto já se “poupou” com estas alterações, por que razão elas
ainda não chegam e o que foi feito do dinheiro? Suponho que sei, mas a maioria
dos aposentados, que já sentiram as consequências das diferentes medidas,
pensava que estas eram suficientes.
Se não eram, por que razão não lhes foi dito e explicado
atempadamente, apanhando-os agora desprevenidos? E será que eram mesmo
insuficientes? Ou aproveita-se a onda de cortes e põe-se tudo no mesmo saco?
Não se trata de uma medida estrutural pois só durará enquanto eles vivem e não
é de esperar que seja, em média, muito mais do que uma década.
3. Tem o
Primeiro-Ministro razão quando diz que descontámos para ter pensões (CGA e
regime geral), mas não “estas pensões”. Na verdade, não é preciso ser cínico
para dizer que era possível prever que tal iria acontecer – o Estado deixou de
ser pessoa de bem há muito tempo e isso prova-se pelas malfeitorias que tem
aplicado aos cidadãos, forçado, pela incompetência dos governos, a cortar nas
despesas e a aumentar as receitas (estas são só algumas entre outras). No
limite, se o Primeiro-Ministro não clarifica, a conclusão a que se pode chegar
é que descontámos (os atuais aposentados e os que virão a aposentar-se) uma brutalidade
para ter pensões não compatíveis com esses descontos. Quererá o Primeiro-Ministro
explicar, se for esse o caso, que a sua intenção não era pôr novos contra
velhos? Se não era, tiveram esse efeito.
4. Na primeira
parte da década de 90 (ou fim da década de 80!), o Conselho de Reitores das
Universidades Portuguesas, prevendo que se poderia chegar ao ponto a que
chegámos (não tão grave, pois era precisa muita imaginação) propôs ao Governo
que permitisse que se pudesse pôr, a título voluntário, um limite às pensões
(neste caso dos membros das Universidades, pois só para isso tinham
legitimidade), com a redução correspondente nos descontos, deixando a
possibilidade de se poder, naturalmente, aderir a um sistema de seguro, ou algo
semelhante. Concorde-se, ou não, com a proposta, verifica-se hoje que ela tinha
a sua razão de ser e até já foi uma hipótese avançada por alguém do atual
executivo (neste momento já é impossível sem riscos apreciáveis). O governo não
viabilizou a proposta e, como tinha a faca e o queijo na mão, ficou tudo na
mesma. Convém referir que, na altura, o sistema da CGA não tinha, de modo
algum, um problema semelhante ao de hoje. Com a negação da hipótese, pelo
governo, ficou, naturalmente a convicção de que o Estado asseguraria o
cumprimento do que estava na lei, na altura. Vê-se! Alguém explica isto? Estou
certo que ninguém quer falar do assunto.
5. A situação do
país é aquela que se sabe. A incompetência dos governos é a maior responsável
por ela. Não se toca, ou toca-se a fingir, nas PPP’s e nas rendas elétricas. Poucos
são responsabilizados pelos desmandos. Há, diz-se sem que seja negado, centenas
ou milhares de milhões de euros que estão perdidos por negligência ou por ações
criminosas. Vai buscar-se dinheiro sempre aos mesmos, “confiscando-lhes” a sua
propriedade, mas não se cuida de o ir buscar a quem o terá subtraído.
Quererá o
governo, em nome do Estado, pedir desculpa aos portugueses pelo descalabro? E mostrar
a sua determinação em corrigir o rumo, sem se esconder numa putativa reforma do
Estado?
Haverá,
seguramente, mais perguntas a fazer. Porém, se tiver respostas a estas, e elas
forem convincentes, dar-me-ei por minimamente esclarecido. Pelo menos,
servir-me-ão de justificação para, sem grandes problemas de consciência, poder
afirmar que a dita convergência gradual, ou imediata, tem sentido.
Até ter
respostas, recuso-me a ser conivente com esta hipocrisia. Felizmente para mim, porque
no meio desta miséria moral e material ainda sou dos menos prejudicados, não
tomo esta atitude por temer que os cortes me venham a afetar irreversivelmente
(repare-se que aceito o princípio). Tomo-a por entender que os princípios são
mais importantes do que o dinheiro, e devem ser recordados por quem ainda tem a
liberdade de os defender (os que foram levados ao limiar da pobreza estão muito
limitados na sua liberdade de expressão).
Os direitos
adquiridos não são todos sagrados, mas a confiança nas instituições que nos governam
é (ou deveria ser). E só essa confiança legitima que alguns desses direitos
sejam retirados. Ao que se constata, tudo está invertido: corta-se primeiro e
depois quer-se legitimidade.
Já não é só incompetência – é
estupidez, teimosia, miopia ou má-fé.
Resta-nos
apelar para os deputados para que tenham a coragem de tornar este processo racional
e inteligível, que é o que deles se espera, e porque o governo não o faz nem
quer fazer. Por isso me dirijo a vós.
Virgílio Meira
Soares